"Em casa de menino de rua, o
último a dormir apaga a lua", diz
o poeta popular paulistano Giovani Baffô. Uma bola e inspirada imagem da rotina
dramática que predomina nas calçadas, sarjetas, sob as marquises e viadutos. A
poesia também ajuda lembrar, a quem já se esqueceu, que debaixo daqueles trapos
sujos e cabelo emaranhados há gente de carne e osso, com sangue correndo pelas
veias, coração batendo e muita história pra contar.
O músico Júlio César Pena, 51 anos, um
invisível de 1,98 metros de altura, é uma prova disso. Personagem de repostagem
no jornal O Popular, ele revelou como chegou à vida de morador de rua. Fã de
Chico Buarque e Elis Regina, Júlio já promoveu shows, cursou e concluiu o
ensino médio, foi supervisor e educador social do SOS Criança. Mergulhado na
depressão depois de problemas com a ex-mulher, abandonou tudo, perdeu
referências e foi parar na rua. Entre uma estrofe e outra de Djavan, ele contou
sua história ao jornalista, o que permitiu o reencontro com a família - a
reportagem foi lifa por um irmão da cidade de Rio Verde/GO, que o procurava
havia sete anos.
Não foi a primeira vez que uma matéria
do jornal ajudou a tirar alguém da rua. No fim da década de 90, o protagonista
foi Ludovino Fernandes, então com 24 anos. Aos 12, ele fugiu dos maus-tratos do
avô no Mato Grosso e veio parar em Goiânia. Surdo e mudo, vagou pelas ruas
durante outros 12 anos, sem saber como voltar para casa, até que foi internado
no Hospital de Urgência (HUGO) com grave intoxicação alimentar, após comer
restos achados do lixo.
No hospital, desenhou um rio, uma
ponte, índios e árvores, num esforço desesperado de comunicação para tentar
indicar qual era sua cidade e reencontrar a família. A reportagem que contava
detalhes do drama, chamou a atenção de um radialista de Nova Xavantina (MT). A
descrição lhe pareceu familiar e ele espalhou a notícia em um programa de
rádio. Uma vizinha da família ouviu e garantiu a última providência para o final
feliz, avisando os parentes. Ludovino voltou a viver debaixo de um teto, com a
mãe e os irmãos.
Nos dois casos, bastou que Júlio e
Ludovino fossem ouvidos e observados como seres humanos - e não como trastes e
incômodo social - para que eles retomassem seu caminho. Mesmo que não seja
sempre tão simples assim, é fato que existem outras dezenas de invisíveis que
querem ser vistos e reencontrados.
(...)
Silvana
Bittencourt (Da
Redação, Jornal O Popular - 27/01)